29.4.09

É fantástico ter corpo, ter pele. Sinto-me e observo-me. Do sitio onde estão os meus pensamentos e a minha dor, olho o meu corpo com carinho pelo calor fugaz da sua natureza. Vejo à distância como é frágil e sedento. Perdoo-o e amo-o e compreendo-o silenciosamente como o faria alguém que sabe que não vai morrer, e olha com serena e eterna nostalgia o vai-e-vem de um mundo em que não pode tocar.

25.4.09

Ele amava-a. Nos seus diálogos interiores já tinha tido a coragem de utilizar a palavra amor em relação a ela. Era um segredo só dele, que saboreava em cada segundo em que podia ficar só a olhá-la, só a ouvi-la, só a sentir a presença dela ao seu lado. Eram secretamente os seus momentos preferidos: quando não fazia parte da conversa, quando ninguém estava a olhar para ele. Aí ele podia fazer uma pausa da sua própria vida, podia descansar de ser o ele de sempre e viajar um bocado só a observar, a ver, a vê-la.
Ela queria estar ao pé dele, da força dele. Sentia-se viva ao pé daquela velocidade. Queria sentir-se pequena e não compreender a grandeza a abraçava, a grandeza que a tinha sempre entertida. Ela via-o falar com os amigos, sempre seguro, sempre com uma resposta pronta. Ela via-o a conduzir a velocidades alucinantes e a rir relaxado. Via-o sempre desperto, sempre com os pés na terra, sempre atento. Ela sentia "coisas" de cada vez que ele se levantava empolgado e falava alto para as pessoas à sua volta, de cada vez que ele metia conversa com estranhos e os seduzia em dois instantes. Ela sentia-se segura quando via que os homens e as mulheres à sua volta o admiravam, quando ficavam surpreendidos com as suas palavras.
Nunca tinham estado sós. Desta vez, como por acaso, acabaram juntos. Caminhavam em silêncio, lado a lado. Ele estava maravilhado, num êxtase silencioso. Aproveitava toda aquela ausência de ruídos e conversas para ouvir todos os sons dela, a respiração, o ritmo dos passos. E olhava-a. Olhava-a e absorvia todas as maravilhas, todos os defeitos e todas as normalidades daquela pessoa.
Ela caminhava ao seu lado. Ele já ia calado há algum tempo e ela não sabia bem o que dizer. Talvez ele fosse fraco, afinal. Agora que estavam só os dois ele devia arrebatá-la, fazê-la rir. Mas não, ele caminhava ao seu lado silencioso. Ela nem o sentia, de tão silencioso que ia. Agora que estavam só os dois ele estava calado, como um tipo qualquer. Não havia força nem velocidade, só uma estranha sensação de calma. Estava aborrecida.

16.4.09

Vou-vos falar sobre a loucura emocional. Eu gosto de pensar que não a tenho porque sou livre, porque estou sempre desperto e consciente da razão porque razão faço as coisas. Mesmo quando estou inconsciente tenho a sensação que há uma verdade inevitável que sai dos meus actos. Também gosto de pensar que não caio na loucura emocional porque me esforço sempre por ver as coisas tão simples como elas são, e se num instante eu transformo qualquer pessoa que encontro num mito, nesse mesmo instante eu analiso-a com o olhar mais frio.
A loucura emocional nasceu quando o primeiro homem guardou a imagem da primeira mulher na memória. Depois alastrou-se com histórias, canções, poemas. Agora sofremos todos porque imaginámos coisas. Imaginámo-las e queremos que o nosso mundo seja assim. A loucura emocional sofre porque está só, pela teia de impossibilades de lar da alma que vai tecendo. A loucura emocional é o estado de quem quer sempre tudo, sem nunca deixar de amar aquilo de que abdica. Sendo assim eu seria o melhor exemplo de um louco emocional. Mas eu gosto de pensar que vejo as coisas claramente, gosto de pensar que por aceitar o meu sofrimento e as minhas perdas como naturais, não dou espaço para a criação de nenhum bolor na alma.
Há dias em que acordo e quase sinto pena da minha pequena pessoa por estar sozinha. Ponho-me ao volante e guio ate alcançar uma cara familiar, um sorriso quente, o conforto de uma expressão facial que já sei de antemão que vai acontecer em x momento. E esse meu gesto de pegar no carro e procurar um amigo ou um antigo amor é o reflexo dessa primeira memória que o primeiro homem guardou da primeira mulher. A verdade é que eu sou um louco emocional, sou o pior louco emocional. Já tive o lar na minha mão, mas rejeitei-o repetidamente para procurar um lar, (se a frase é confusa é porque os próprios actos também o são). E sei que toda a minha frustração é consequência de todas as minhas fugas. Mas eu acredito no fim como inevitavel, pelo menos tanto como quero acreditar que estou prestes a encontrar algo que não acaba. Já me disseram muitas vezes que o Alter Ego fala pouco, e que quando escreve, só escreve sobre si próprio. Eu acho que sim e acho que não. Não sei bem porque quis escrever sobre a loucura emocional. ninguém se tornará mais lúcido por isso, nem vou aliviar a vida pesada de ninguém, só fico, eu próprio, mais consciente deste indefinido eterno em que estou condenado a passar os meus dias, que me vai fazer ter sempre a esperança de encontrar a eterna tarde do sol quente, já a saber que ela é impossivel.

15.4.09

Poder-se-ia dizer que eu estava sóbrio. Na verdade eu era aquele gajo que bebia uma cerveja calmamente, com uma mão no bolso, e só um pé a abanar ao ritmo da música. Eu era esse tipo e observava-me a dançar no meio do bar quase vazio. a dançar e a desequilibrar-me e a dar encontrões a estranhos. Esse gajo que dançava trazia a morte nas suas costas, e dançava como se comemorasse o grande vazio, como se cada passo torpe da sua dança fosse ao mesmo tempo um hino e um desafio ao abismo. Lá dentro dele acontecia tudo isso, dentro desse tipo estavam a haver juras eternas de amor, lágrimas, separações, mortes de amigos, viagens, nascimentos de filhos, traições, dias calmos... Aquele tipo queria fugir da vida e queria toda vida. Estava todo fodido, sorria e metia-se com as mulheres do outros, os seguranças do bar olhavam-no de lado. Uma miuda aproximou-se dele.
Ela tinha-o reconhecido. Já tinha estado com ele uma vez, na praia, quando ocasionalmente dois grupos de amigos se cruzaram. Ele era calmo e até um pouco calado, levava um livro na mão e mostrou-lhe um sorriso meio fascinado quando foram apresentados. Na altura ela estava com um namorado, um namorado grande e forte que a abraçava ternamente com os braços fortes, e que nunca deixava que o tempo se tornasse morto.
O tipo que dançava reparou na miuda e lembrou-se que já a tinha visto uma vez, e de ter pensado que ela daria um paraiso no campo e um pesadelo na cidade.
Ele enlaçou a miuda e continuou a dançar. Ela riu-se, pensou que ele era louco, e olhou à volta para ver a que tipo de vergonha se poderia estar a arriscar. Depois, ela achou que tudo isto era giro, sentiu um pouco de pre-nostalgia por qualquer coisa, gostou disso e fechou os olhos. Lembrou-se da sensação dos braços fortes daquele namorado grande e forte e dançou com isso.
Ele pensou: Porque não? Agarrou-a prendeu-a ao peito. Lembrou-se da morte do amigo e esqueceu-se que estava a dançar com ela. De repente sentiu-a de novo e quis tê-la, comê-la, queria vê-la a suar. Beijou-a, olhou para ela e pensou que não tinham nadinha em comum. No entanto a curiosidade, que pequenas diferenças, que irritações, que intensidade? Como é que tu te mexes?
Rodopiou-a. Dançava com aquela miuda naquele bar.
Mais uma vez, a ressaca. Não me dói a cabeça, não estou mal disposto nem com vontade de vomitar. O que se passa é que sinto um desassossego tremendo, como se tivesse perdido durante a noite uma coisa gigantescamente importante, e que nunca mais vou recuperar. E o pior é que não me consigo lembrar de que coisa é essa.